quinta-feira, 5 de abril de 2012

Clóvis Beviláqua (I)


Considero essa biografia (que conta com a edição da Universidade Federal do Ceará) a melhor jamais escrita sobre Clóvis. Poucas pessoas reuniram tantas credenciais para biografar Clóvis Beviláqua como Sílvio Meira. Profundo conhecedor do direito romano, o professor paraense era filho de um dileto amigo do próprio Clóvis: Augusto Meira. A admiração deste por Clóvis fez com que desse o mesmo prenome a um de seus filhos, Clóvis Meira, irmão do autor do trabalho. Ter conhecido pessoalmente um dos netos de Sílvio e dele ter ouvido casos instigantes sobre a sua vida e a sua obra foram fatos que aumentaram ainda mais a admiração que tenho pelo autor de "Instituições de Direito Romano", "A lei das doze tábuas", dentre outras obras.
A pesquisa é incrivelmente extensa. Aliás, o fôlego de Sílvio Meira para pesquisar sobre a vida dos mestres do direito brasileiro já o consagrara em seu livro sobre Teixeira de Freitas ("Teixeira de Freitas: o jurisconsulto do império", que poderá aparecer por aqui em outra oportunidade). Meira explora a ascendência de Clóvis, com curiosas estórias sobre o padre José Beviláqua, pai do biografado. Sim, Clóvis era filho de padre, assim como outro grande titã do Ceará, José de Alencar. A partir daí, conta-se a formação de Clóvis, em Sobral, em Fortaleza (onde estudou no Ateneu e no Liceu do Ceará), no Rio e, finalmente, na Faculdade de Direito do Recife. É interessante Clóvis ter confessado que, até ao quarto ano do curso, não sentia grande atração pelo Direito (mas tudo mudou, por influência forte de Tobias Barreto). A curta e malfadada vida política do biografado também é objeto de análise (faltou-lhe a vocação e o estômago para os arranjos de gabinete). A infatigável disposição de Meira o levou à relação mantida por Clóvis com grandes instituições do país, como a Academia Brasileira de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Instituto dos Advogados do Brasil. Há fartos registros das contribuições dele a essas instituições, sem passar despercebida a célebre polêmica que envolveu a candidatura (rejeitada) de Amélia Beviláqua à ABL. A atuação de Clóvis no Ministério das Relações Exteriores é relatada com base em muitos dos pareceres emitidos ao longo dos anos em que atuou ali.
A saga da codificação do direito civil brasileiro, cuja abordagem Meira já iniciara com o seu livro sobre Teixeira de Freitas, é ricamente retomada nesta obra. Um tema me chama demais a atenção, seja pelo fato de envolver o já citado José de Alencar, seja por nunca ter sido mais investigado: a participação de Alencar na codificação civil brasileira. Meira afirma que Alencar, quando ministro da justiça durante o império, viria "entravando a marcha da belíssima proposta de Teixeira de Freitas para a elaboração de um Código Geral e de um Código Civil, com unificação do Direito Privado, constante da carta de 20 de setembro de 1867." (p. 140-141). A afirmação de Meira deve ser tomada com um grão de sal, pois, se é verdade que Alencar tinha pretensões de contribuir diretamente para a codificação (e deixou isso consignado nos seus "Esboços Juridicos", de publicação póstuma), também é verdade que Teixeira de Freitas não apresentou a mesma presteza na elaboração de seu projeto de unificação do Direito Privado (o seu "Esbôço" ficou inacabado) que demonstrou na elaboração de sua monumental "Consolidação das leis civis", possivelmente pela fadiga que o trabalho incessante lhe trouxe. O tema fascina e comporta novos estudos. Até contactei o pessoal da Casa de José de Alencar (https://www.facebook.com/profile.php?id=100003005658172) para saber que materiais poderia encontrar, com vistas a este ponto, mas ainda não fui lá para ver isso.
Para não dizer que o livro deixou de me desagradar em algo, devo confessar que os pendores religiosos de Meira parecem levá-lo, em um ou outro momento, a querer deixar uma marca de misticismo ao redor de Clóvis, como quando encerra um capítulo a dizer que ele foi um "servo de Deus". Na obra sobre Teixeira de Freitas (jurista que teve uma fase profundamente religiosa), isso é explorado em maior escala. Bem, seja como for, o autor aborda com profundidade os credos filosóficos de Clóvis e sublinha que ele, apesar de filho de padre, foi profundamente anti-clerical.
Finalmente, chamo a atenção para a lista de obras de Clóvis que Meira traz ao final do livro, roteiro (possivelmente ainda incompleto, é verdade) que pode servir para uma futura edição de suas obras completas, o que o biógrafo faz questão de cobrar às autoridades públicas. Cobrança que eu reforço. A possibilidade de promover uma edição digital das obras de Clóvis, com um custo significativamente menor que grandes tiragens em papel, derruba boa parte das desculpas para essa omissão. Como os direitos autorais de seus trabalhos estão prestes a acabar, o momento é propício para a empreitada.
Para quem tem mais curiosidade sobre a vida e a obra de Clóvis, sugiro, além da leitura dessa obra, uma visita ao Memorial, instalado no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, que concentra o maior acervo sobre o mestre cearense concentrado em um só lugar. Em Viçosa, terra natal de Clóvis, o mesmo tribunal mantém um museu na casa em que ele nasceu, onde estive há algumas semanas. Não há uma grande quantidade de peças, e a conservação do espaço já tem deixado um pouco a desejar. Mas se pode ver, por exemplo, a navalha com que Clóvis afeitava a barba. Lá também descobri seu gosto pela filatelia (alguns selos encontrados em seus pertences estão expostos). Mas o melhor é entrar no local em que o padre José vivia "de portas a dentro" com Dona Martiniana, relação que gerou o grande biografado.

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